domingo, 15 de março de 2009

Luz Fria [0]

À meia luz, uma morena, nunca antes tão magra e pálida, bebia solitária à mesa de um bar. Dava pequenos e reservados goles na cristalina taça embebida por um líquido quase imperceptível; olhos cúmplices à parede vazia. Ignorava um desses quadros boêmios de abstração que havia na outra parede. Perdia-se na sua própria abstração; na tarde que antecedeu esta noite, ela leu em algum dos livros que comprou, não por seu conteúdo, mas pela ganância de conhecimento em demasia, ela leu: "O homem não é a soma do que tem, mas a totalidade do que ainda não tem, do que poderia ter – SARTRE”. Demasiada ignorância não os ler.
Pensativa, almejava filosofar sobre o tema, à mesa de tal bar, com seu olhar escudo para qualquer outro curioso ou reprovativo. Como quem lê um livro pelo seu título, e traça outro enredo, outras personagens, outros reinos, ela pensava; parecia escrever sem saber uma só palavra, não por estar escrevendo em outro idioma que possa existir nesse chão, nem outro inventado, que passa a existir quando criamos fonemas, mas sim, um idioma sem fonemas, sem verbalizações, sem nada. Escrever cegamente. Só sentindo na pele, nos nervos, naquilo que por conformismo chamamos de coração. (Não conhecemos tudo, mas fingimos conhecer. Nos julgamos corretos, mesmo que nossa vontade inútil de nomear, denominar tudo e todos, seja como já disse, inútil).
Filosofando, então. Aventurando-se no imaginário, que apesar de tão real, tão correto, lógico, não existe, não é palpável. Mas tudo que existe é palpável?
Eis que uma mão acaricia a de nossa pálida personagem, (tão real quanto nosso imaginário).
Assustada, como se não estivesse esperando a grande epifania de Clarice, ela sorriu. Ela o esperava; da surpresa fez-se a cumplicidade. Dois assassinos mudos. Bebia tão reservadamente, tímida, que jamais revelaria à ninguém, nem a ela mesma, que estava esperando aquele. Ele que venceu as barreiras de ferro: tramas que só a mente constrói.
- Demorei muito?
- Não muito.
E de fato, ele não havia demorado muito. Logo ela se rendeu, abriu as portas de sua casa : nas paredes, retratos que revelam silenciosamente sua paixão, se assim fosse ela tão grande para se apaixonar, a paixão pela solidão. Fotografias de janelas fechadas, cantos de cimento armado, altares de um subúrbio qualquer de Paris, ou de Berlim, pouco importa. Preto no branco. Simples e requintado. Possuía bom gosto, mesmo que reservado. Não contava à ninguém, nem aos livros que não abria sempre. Juntava tudo: os gostos, os livros, a fé e o sorriso, tudo para o grande momento em que deveria estar preparada, vestida com sua armadura e salva.
Os carros velozes na avenida em frente ao bar andavam cada vez mais velozes e em menor quantidade, o tempo passava. Pouco a pouco, as pessoas se levantavam, saiam. Os dois pouco se falavam, nem se olhavam, porém gostavam daquele momento, juntos. O olhar da moça sempre aportava no cais da parede em branco, ou melhor, em preto. Pudor? Felicidade. Com ele, ela se sentia mais só, e isso para ela não era ruim. A solidão era aquilo negro, aquela parede, um arrepio, um suspiro ao pé do ouvido.
- Já está tarde. Vamos embora?
Ela sorriu: era um sim para ele.
- Vai de táxi?
- Vou. E você?
- Vou a pé, moro perto.
Cada um para um lado. A escuridão, mesma que fracamente iluminada pelos out-doors da avenida, escuridão, os engolia. Cada qual para o seu rumo. Cada um com o brilho opaco nos olhos, pelo caminho.

[...]